ADOÇÃO NÃO É CARIDADE; ENTENDA POR QUE

  Amigas criaram o primeiro curso de doulas de adoção do Brasil

'Adoção não é caridade': amigas criam iniciativa após passarem pela adoção em diferentes pontos de vista

Marianna Muradas e Mayra Aiello são criadoras do Doulas de Adoção, uma iniciativa que acolhe as particularidades dessa via de chegada dos filhos às novas famílias. Em entrevista com Marie Claire, a dupla fala sobre sua própria experiência com a adoção em diferentes pontos de vista: como mãe e filha

Por Bruna Liu, redação Marie Claire — São Paulo

24/10/2023 06h00  Atualizado 07/11/2023


“Nossa história é uma junção de caminhos”, define Marianna Muradas, uma das criadoras do Doulas de Adoção. Junto com Mayra Aiello, ela criou o projeto que tem como propósito acolher as particularidades dessa via de chegada dos filhos às novas famílias. As duas, inclusive, têm uma forte conexão com o tema por terem passado pela experiência da adoção em diferentes pontos de vista: como mãe e filha.

Adotada aos cinco anos de vida, Marianna conta que seu processo aconteceu no final dos anos 80 em uma “adoção à brasileira”, como é conhecida a prática sem seguir um processo formal. “O clássico ‘fiquei sabendo que tem alguém ali no hospital’. Não era uma intenção da minha família adotar, mas foi como aconteceu”, conta em entrevista com Marie Claire.


“Sempre soube da minha adoção, fui adotada por uma mãe que também foi adotada com uma história de vida muito diferente da minha. Mas acredito que ela sempre conseguiu ter esse olhar mais empático por também ter lidado com as questões dela da forma que pôde referente à adoção. Ela teve um olhar muito respeitoso a minha biografia, história, a minha genitora, então isso tem um impacto muito positivo."

Educadora formada pelo Feldenkrais Institute of San Diego, Marianna também é doula de parto com certificado desde 2014 pelo DONA International, e acrescentou mais um ponto na sua trajetória profissional durante seu tempo morando nos Estados Unidos. “Por lidar com os meus próprios traumas, as questões da minha adoção, me tornei doula de adoção por lá em um modelo completamente diferente do que a gente traz aqui."

Ao voltar para o Brasil em 2016, ela começou a trocar mais informações com Mayra-- com quem conversava pela internet na época. Naquele ano, a psicóloga planejava entrar na fila da adoção e, enquanto buscava mais informações sobre o assunto, encontrou uma entrevista de Marianna comentando “sobre questões sociais, política pública e diversos pontos que envolvem o ato de adotar."

“Eu falei ‘nossa, quero que meu futuro filho ou filha tenha essa visão, ajudar a construir isso, porque é uma coisa muito diferente do que eu tinha acompanhado, que na época e até hoje é uma visão muito romantizada", diz Mayra.

Mayra queria ser mãe há oito anos e passou por uma jornada até realizar o sonho. Ela teve dois abortos espontâneos antes de decidir, junto com o marido, adotar: “A Maria chegou aos nove meses, foi um grande susto para mim, depois de dois anos de espera”. No período da chegada de sua primogênita, a psicóloga começou a ter algumas alterações e foi quando Marianna constatou: “É puerpério.”

“Me conectei muito com a Mari, com a forma dela trazer a questão da história dela. Além de psicóloga, eu trabalhava na formação de doulas de parto e a Mari também, então questionei ‘nossa, por que eu não posso ter uma doula?’. Quis contratar uma ao entrar nesse processo, mas não existia no Brasil. E aí quando a Marianna falou que era formada nos Estados Unidos, uma chavinha virou: ‘Vamos formar alguém pra fazer isso? Vamos ensinar alguém?’”.


Mayra, Marianna e seus respectivos filhos — Foto: Michelli Crestani
Mayra, Marianna e seus respectivos filhos — Foto: Michelli Crestani

Sendo a primeira doula de adoção no Brasil, Marianna apoiou e ajudou a validar as alterações que Mayra estava tendo nessa fase do puerpério. “Eu dizia que era e a Mayra não acreditava, argumentando que não existia na literatura. Mas vi isso acontecer nas famílias que doulei nos Estados Unidos, de vivenciarem puerpérios com a chegada da criança. Não muda nada, porque, na verdade, o gestar ou não o gestar não é o que faz com que o puerpério aconteça."

Mayra lembra: “Tive esse cabo de guerra da identidade, ao mesmo tempo, muita criatividade que eu e a Mari tocamos e idealizamos todo o projeto do Instituto. Ao mesmo tempo, o estresse, o manejo de várias alterações emocionais. Pra mim, o que me pegou mais foi a ansiedade. Fui buscando estratégias para lidar com isso. O que me ajudou muito foi a rede de apoio, tanto a doulagem como a Mari, ao mesmo tempo a família e meu companheiro."

O que é uma doula de adoção?

É uma profissional que dá apoio emocional aos momentos de transição e que acompanha todas as vias de nascimento de uma família, inclusive a adoção. Há cinco anos, Marianna e Mayra idealizaram a atuação das Doulas de Adoção no Brasil, que acolhe as particularidades dessa via de chegada dos filhos às novas famílias.

“Era muito importante que a gente conseguisse unir elementos que falassem da adoção pela perspectiva da parentalidade ativa e consciente, e não nesse lugar romântico. Então a gente logo de cara lançou o instituto com a frase ‘adoção não é caridade, adoção é via de parentalidade’ porque víamos o quanto isso nos massacrava quando ouvíamos as falas”, diz Mariana.

O instituto criou o 1º curso de formação para Doulas de Adoção do Brasil. Já foram seis turmas: a primeira foi presencial e, 15 dias depois, entrou a pandemia. “Passamos a fazer online e aí a gente teve mais duas turmas no mesmo ano. Agora, fazemos anualmente. Desenhamos [o curso] de uma forma única, também baseado na nossa experiência e no curso que a Mari fez nos Estados Unidos, de fazer um processo de certificação para quem quer se tornar doula”, diz Mayra.

Elas ainda explicam que uma profissional em formação atende uma família com orientação, supervisão e também “faz o que for necessário”. “É um trabalho criativo em que entregamos para o mundo essas reflexões sobre a adoção que estamos construindo, fomentando e que cada um queira se debruçar."

Até o final deste ano serão quase 100 doulas formadas desde a sua criação. “É uma alegria para nós. Nosso objetivo era ter uma doula em cada comarca. E acho que estamos nos espalhando, né? Acredito que, em breve, teremos quase em todos os estados."

Romantização da adoção

Estampado no slogan do Instituto, muito se fala também sobre a romantização da adoção. “A problemática maior é que faz com que a gente não seja crítico ao que significa realmente adotar no Brasil. Por isso, vivenciamos adoções tão disfuncionais ainda. Temos que lembrar um pouco da nossa história como um país colonizado. Esse lugar de que as classes sociais têm mais poder e podem fazer uma escolha. Para muitos, a adoção ainda é vista como se estivéssemos garantindo crianças para as famílias e não famílias para as crianças."

“Eu digo que a criança não é vista no Brasil como um cidadão de direito. A criança preta, pobre, muito menos. Então falar sobre adoção também é discutir sobre questões sociais muito graves que a gente vive e trazer essa consciência para as pessoas e lembrar né? Quais são os direitos que temos que garantir como sociedade”.

Marianna reflete sobre como o ato de adotar vem “com muitos lutos e perdas ao longo do seu processo, tanto para o filho quanto para a família”. “É um lugar que a gente tem que olhar, mas é como se não tivéssemos maturidade emocional para lidar com as ambivalências da vida. Então é meio que: ‘não vamos falar da parte difícil e desafiadora, vamos só falar que é lindo, caridoso, incrível’, porque se você for falar do seu luto, eu não estou preparada pra ouvir’. Fica aquele papo superficial. Então convidamos a sociedade a afundar. Falar sobre as dores e as perdas não diminui ninguém."

Mayra acrescenta, ao relatar como a romantização da adoção “acaba também sendo até uma crueldade”, por exercer muita pressão nas famílias e nas crianças. “Isso vai muito nesse modelo heteronormativo de uma gestação exclusivamente biológica, de uma parentalidade exclusivamente biológica, em que se não cumprir aquele modelo, tem alguma coisa errada. E aí a gente fica sempre correndo atrás desse padrão ouro."

“Tenho que compensar sendo a melhor mãe e pai do mundo, não sentindo nenhuma dessas ambivalências. Não posso perceber que estou sentindo luto, que estou sentindo ansiedade, estresse, depressão por causa da adoção. não posso falar que está sendo difícil, que estou cansada. É uma série de opressões que vamos comprimindo as famílias e fazendo mais violência."

“O nosso projeto é lindo, mas ele tem todas essas nuances. A gente lida com questões difíceis. Lidamos com a saúde mental das famílias”, reflete.


Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/retratos/noticia/2023/10/adocao-nao-e-caridade-amigas-criam-iniciativa-apos-passarem-pela-adocao-em-diferentes-pontos-de-vista.ghtml


'As pessoas têm essa ideia errada de que adoção é um ato de caridade'

Em um depoimento intenso e emocionado, a jornalista e apresentadora Cris Guterres relembra o processo de adoção de seu filho, Rafael, então com 14 anos, lamenta a visão romantizada que as pessoas têm e reflete sobre os desafios de cultivar a relação

Por Isadora Pacello

12/05/2023 01h00  Atualizado há 8 meses

Cris Guterres — Foto: Mariana Marão
Cris Guterres — Foto: Mariana Marão

Cris Guterres, 41, nunca quis engravidar — e, ainda assim, o desejo da maternidade sempre esteve presente. Após anos priorizando a carreira como jornalista, ela conheceu Rafael, então com 14 anos, num abrigo de crianças e adolescentes, e amadrinhou o jovem. Nove meses depois, ele pediu para tornar-se filho de Cris, que critica a visão ainda muito romantizada que a sociedade tem da adoção.


“Assim como sempre soube que queria ser mãe, sempre soube que não queria engravidar. Queria adotar. Mas tinha a questão profissional. O que é considerado sucesso para uma mulher negra? Então ia jogando a maternidade para a frente. Até que, aos 37 anos, fiz uma viagem com uma amiga para Orlando e entendi que eu não podia mais adiar. Comprei uma Barbie maravilhosa e voltei com ela na mala, decidida a adotar uma menina entre 8 e 11 anos.

Nessa época, comecei a fazer um trabalho num abrigo de crianças e adolescentes. Lá, me convidaram para ser madrinha afetiva do Rafael, que tinha 14 anos. A gente se identificou imediatamente, porque eu sou muito chavosa e ele é um adolescente.

Esse foi um período muito sensível da minha vida, porque eu tinha acabado de perder minha mãe. Mas entrei de cabeça. Não era só a madrinha que leva para passear — ia na reunião da escola, sentava para conversar, queria que ele fizesse faculdade.

Ele quis passar o Natal comigo, e assim foi. No Ano Novo, a gente foi para a Avenida Paulista. Ele passou praticamente as férias inteiras na minha casa. Passamos por muitos desafios nesses meses, e acho que isso nos moldou. O Rafa tinha muita dificuldade de entender que era amado por mim. Ele me testou várias vezes, achava que não merecia, tentou se sabotar.

Cris Guterres — Foto: Mariana Marão
Cris Guterres — Foto: Mariana Marão

As pessoas já me viam como mãe dele. E aí ele disse que queria ser meu filho. Fazia exatamente nove meses que eu tinha me tornado madrinha dele. Então entrei com um pedido de guarda.

Falam que, ao adotar um adolescente, imediatamente ganhei um terreno no céu. Porque as pessoas têm essa ideia de que a adoção é um ato de caridade, uma salvação, e que isso faz de você uma pessoa maravilhosa.

Achei que seria muito mais fácil. Mas não imaginava adotar um menino que seria tão meu companheiro.

Claro que tem muita cobrança, tipo: ‘Você adotou, precisa fazer a vida dele dar certo.’ Mas não quero que meu filho carregue o peso de ter que atender às minhas expectativas. Não quero moldar meu filho. A energia que dedico à educação dele é para que ele se torne uma pessoa que faz suas escolhas.

Eu me tornei mãe por um desejo egoísta de passar meu amor para a frente, ter alguém comigo. Então eu conheci o Rafael, e hoje o que eu quero é ser feliz com ele. Quero viver esse momento que a gente vive. Viveria essa história milhares de outras vezes.”

Mátria Brasil — Foto: Mariana Marão
Mátria Brasil — Foto: Mariana Marão

Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/maes-e-filhos/noticia/2023/05/as-pessoas-tem-essa-ideia-errada-de-que-adocao-e-um-ato-de-caridade.ghtml

 

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