"Eu tinha 18 anos e fazia jornalismo na PUC do Rio quando meu pai foi transferido para a Bélgica. Como gostava de pintar, o momento parecia perfeito para mergulhar nesse universo. Assim, me inscrevi numa escola de artes em Lausanne, na Suíça. Era a primeira vez que ficaria sozinha, por conta própria. O ano era 1958.
Cheguei ao Instituto Athenaeum e imediatamente fui à secretaria me apresentar. Notei um rapaz na sala que não parava de me olhar. De rabo de olho, vi que era um loiro, bonitão. Gostei. Depois disso, sorríamos um para um outro sempre que cruzávamos nos corredores. Até que tomei coragem e chamei o moço para um café depois da aula.
Raymond era suíço de Neuchâtel, tinha acabado de completar 19 anos e cursava arquitetura. Nesse primeiro encontro, falamos sobre a minha viagem, o Brasil, arte e música. Ele me perguntou se poderia me chamar de Mitsouko, que era o perfume da Guerlain que eu usava na época. Claro que sim.
O passeio virou nossa rotina nas duas semanas que se seguiram. Todos os dias, ele me esperava na porta da classe e, de mãos dadas, descíamos as ladeiras da cidade. Tomávamos um café, ele me levava para a pensão onde eu morava e pegava o trem de volta para casa. Sem tempo a perder, resolvi fazer logo o teste do beijo. Roubei um selinho dele enquanto nos despedíamos. Uma delícia.
Durante seis meses, vivi um sonho. Passar os dias fazendo arte com aquele homem ao lado era tudo o que eu podia querer. Diferentemente da que havia deixado no Brasil, nossa relação não tinha joguinhos, era perfeita. Ele era romântico, atencioso. Um lorde. Mas a comissão brasileira da qual meu pai fazia parte estava voltando ao Brasil e eu precisava acordar. Raymond faria o serviço militar no ano seguinte, não poderia pensar em sair da Suíça tão cedo. E eu, não tinha como manter a vida cara da Europa.
Nunca vou me esquecer do dia em que Raymond me deixou na estação. Parecia cena de filme. O trem seguindo, e eu vendo sua imagem diminuir de tamanho até sumir de vez. No começo, eu escrevia para ele toda semana. Mandava fotos, desenhos. Mas as cartas demoravam a chegar, isso quando chegavam. Comecei a ficar deprimida. Só pensava em trabalhar para poder comprar uma passagem para a Suíça. Como tudo que sabia fazer era falar francês e inglês, fui fazer um curso de datilografia. Três meses depois, consegui um emprego de secretária tradutora, e me matriculei no curso de artes plásticas do Instituto de Belas Artes.
"Nunca vou me esquecer do dia em que Raymond me deixou na estação. Parecia cena de filme. O trem seguindo, e eu vendo sua imagem diminuir de tamanho até sumir de vez"
Minha comunicação com Raymond estava cada vez mais espaçada. Sentia falta de uma atitude dele, de dizer ‘estou indo para o Brasil!’. Precisava ter algum sinal de que ficaríamos juntos outra vez. Foi quando reencontrei Samuel, velho amigo do grupo de escoteiros, que conhecia desde os 15 anos. Ele estava noivo, mas declarou seu amor e começamos então a namorar. Meu pai me fez terminar com Raymond por carta. E nunca mais tivemos notícias um do outro.
Aos 22 anos, me casei com Samuel. Logo nos mudamos para São Paulo, e tivemos três filhos: Carlos, Luis e Isabela. Éramos muito amigos, companheiros. Mas depois de 16 anos nossas diferenças começaram a aparecer. Ele havia virado um grande homem de negócios, queria uma mulherzinha em casa fazendo biscoitos. E eu, era uma artista intelectual. A primeira coisa que fiz depois que entrei para a análise foi me separar.
Meses depois conheci Paulo. Ele era cunhado de uma amiga, também tinha três filhos e estava separado havia pouco tempo. Eu já estava com tudo pronto para voltar para o Rio, quando ele me falou: ‘Você não vai gostar de lá, as coisas mudaram muito’. ‘Então me peça para ficar’, retruquei. Paulo foi até a banca, comprou um jornal e começou a procurar um apartamento para morarmos juntos. O pedido de casamento veio depois de 40 dias. Criamos juntos nossas seis crianças. Dez anos depois, ele fugiu com a secretária e nunca mais apareceu.
Eu tinha 49 anos quando, definitivamente, tomei as rédeas da minha vida. Até então, havia mantido quase que uma vida paralela de artista plástica. Deixava os filhos na escola e ia para o ateliê, fazia exposições, estudava. Mas ainda não me sentia independente. O divisor de águas foi o curso de terapia artística que me transformou na profissional que sou. Naquele período, me dei conta de que não precisava mais de um marido, mas acabei reencontrando meu psicanalista, que havia me ajudado no meu primeiro divórcio, e resolvemos ficar juntos. Ele foi um professor, um mestre para mim. Ficamos juntos por 12 anos, até ele morrer.
Cansada dos homens, decidi focar na minha profissão, na minha família e nos meus netos. Brincava dizendo: ‘Se vocês me encontrarem lavando cueca e dobrando meia de homem, podem me internar, porque devo estar doida’. Não passava pela minha cabeça casar novamente.
Um belo dia, encontrei um envelope amarelo no meio das correspondências, na porta do ateliê. A princípio, achei que era propaganda eleitoral. Depois, vi que o o selo era da Suíça e pensei que era da minha melhor amiga, Stella, que mora lá. Demorei alguns minutos para abrí-lo. Quando o fiz, o choque: era de Raymond, o suíço com quem havia namorado 55 anos antes.
‘Colombier, 11 de maio de 2014. Em 1958, em Lausanne, tive a oportunidade de conhecer uma charmosa brasileira. Ela morava no número 2 da Av. Ruchonnet. Eu tinha o prazer de chamá-la pelo nome do delicioso perfume da Guerlain, que lhe caía tão bem: Mitsouko... Durante alguns meses ela frequentou a mesma escola que eu, o Instituto Athenaeum. Seu pai teve a honra de representar o Brasil na Exposição Universal de Bruxelas. Portanto, se meu nome e estas palavras têm algum significado para você, tenha a gentileza de me confirmar. Parece-me que esta poderia ser uma ocasião maravilhosa de simplesmente trocarmos algumas palavras, algumas memórias. P.S.: Lhe envio esta carta como quem lança uma garrafa ao mar!’.
Enquanto lia aquelas palavras, meu corpo tremia todo. Tinha a sensação de que ele iria se materializar na minha frente. Eu poderia esperar tudo, menos uma carta do Raymond. Durante todos aqueles anos, me perguntava o que teria sido de sua vida. Quando aprendi a mexer no computador, havia buscado por ele algumas vezes. Não podia ser verdade.
Nervosa, liguei para minha filha, Isabela, e em seguida para Stella. Não sabia o que fazer, o que pensar. Será que ele estava me procurando para algum encontro da escola de artes? O que ele queria comigo? Será que era algum stalker? Verdade é que aquele era o único homem que ainda mexia comigo.
"Enquanto lia aquelas palavras, meu corpo tremia todo. Eu poderia esperar tudo, menos uma carta do Raymond"
Isabela me convenceu a responder, argumentando que eu não tinha nada a perder. Eu tinha tanta vontade quanto medo. Mas tomei coragem. Depois de dois dias completamente perturbada, me sentei na frente do computador, olhei para o endereço de e-mail que constava no fim da carta e comecei a digitar. Estava nervosa demais para escrever qualquer coisa. Mas respirei fundo.
Comecei dizendo que, sim, a carta na garrafa havia chegado à praia certa. Depois, questionei o porquê daquele contato após 55 anos. No dia seguinte, recebi a resposta: ‘Porque nunca te esqueci!’. Meu coração disparou. Começamos a conversar virtualmente.
Raymond me contou que, casado uma única vez, por 40 anos, sua mulher tinha morrido de câncer havia alguns meses. E, arrumando as gavetas, tinha encontrado um isqueiro que eu havia dado de presente para ele em 1958, com uma foto minha, e resolveu me procurar. Para isso, foi até o Consulado de Genebra, na Suíça, que o aconselhou a checar as telelistas. Tentou primeiro a do Rio de Janeiro. Em seguida, a de São Paulo, onde eu morava. A sorte é que eu estava usando meu nome de solteira: Mary Porto. Ele então encontrou dois endereços e mandou a mesma carta amarela para ambos.
Ficamos o mês todo conversando por e-mail e Skype. Até que Raymond tomou a atitude que tanto havia desejado. ‘Vou à sua exposição’, disse. Tomei um susto danado. Como explicaria para minha família que um namorado do passado ficaria alguns dias em casa? A vida resolveu por mim: quando foi comprar os bilhetes, ele descobriu que seu passaporte estava vencido e renovar os documentos demoraria um bocado. Então, me ofereci para visitá-lo nas férias de julho. Ele adorou a ideia e disse que poderia me hospedar na casa dele, em um quarto separado, para me deixar confortável.
Isabela programou toda minha viagem sem dizer nada a ninguém. Uma semana antes de embarcar, no entanto, resolvi contar a novidade para meus outros filhos e netos, que acharam aquilo absurdo. Voei para a Suíça morrendo de medo. No avião, me pegava pensando na loucura que estava fazendo.
Cheguei ao aeroporto de Zurique e lá estava ele. Casaco preto de couro, cabelo branco… Bonitão, como sempre. Nos abraçamos longamente. Antes de dirigir duas horas para casa, paramos para comer e conversar. Dez dias depois, estávamos na cama e, como um raio, ele se levantou. Nu, sacou um anel e o colocou no meu dedo. Aos 74, eu me casava pela quarta vez.
Estamos juntos há oito anos, nos revezando entre o Brasil e a Suíça. Não fazemos planos para o futuro. Nosso combinado é viver o hoje, felizes e juntos. A essa altura da vida, entendi, com Raymond, que o amor não envelhece. Ao contrário, é a fonte da eterna juventude.”
Fonte:https://revistamarieclaire.globo.com/EuLeitora/noticia/2022/06/depois-de-55-anos-recebi-uma-carta-do-meu-grande-amor-e-me-casei-novamente.html
"A essa altura da vida, entendi, com Raymond, que o amor não envelhece. Ao contrário, é a fonte da eterna juventude"
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